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Derrubando preconceitos: pessoas trans lutam por direitos e respeito

Para muitos, ainda é difícil conceber a ideia de homens e mulheres trans. Entretanto, a discriminação e a desinformação não impedem que cada vez mais eles conquistem espaço na sociedade.

O ambulatório TT no Clementino Fraga O ambulatório TT no Clementino Fraga

“Pode me chamar de Nancy Mery”. É assim que ela, mulher transexual, se apresenta. Apesar disso, nos documentos, o nome é diferente: o processo para obtenção e formalização do nome social ainda está em andamento. Nancy, entretanto, não reluta em utilizar o nome que escolheu antes mesmo da mudança ser reconhecida oficialmente. Para ela, é uma forma de afirmar sua natureza para os outros e para si mesma.

Hoje com 34 anos, a cambista conta que percebeu que era diferente dos outros garotos por volta dos 8 anos de idade. “No início, eu não conseguia compreender totalmente minha situação”, diz. “Mas, aos poucos, fui percebendo que eu não era aquilo que aparentava ser”. Nancy começou a se identificar como uma travesti pelo fato de se comportar e se sentir como uma menina – mas depois compreendeu e aceitou o fato de que ela era uma transexual.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a transexualidade abrange pessoas que se identificam com o gênero oposto àquele de nascença. Pessoas transexuais podem ou não manifestar o desejo de adotar totalmente o gênero com o qual se identificam – o que pode ser feito, hoje em dia, através de tratamento hormonal e de uma cirurgia para mudança de sexo. As travestis, por sua vez, são pessoas que realizam mudanças apenas em sua aparência externa para se inserir temporariamente no grupo de pessoas do sexo oposto.

Após a descoberta, Nancy precisou esconder sua transexualidade da família. Ela morava com os avós, mas a mãe vinha de tempos em tempos de São Paulo para visitá-la. “Quando ela vinha, eu precisava mentir sobre quem eu era. Minha família era muito preconceituosa”, diz ela. “Eu sentia raiva porque não podia contar”, desabafa.

Foram 14 anos escondendo a transexualidade dos avós e da mãe. Os questionamentos e as dúvidas da família acerca de sua reclusão, seus modos femininos e a falta de interesse no sexo oposto começaram a se tornar cada vez mais frequentes – quando a visitava, a mãe insistia para que ela conseguisse uma namorada.

“Eu me trancava para ficar sozinha”, lembra Nancy. Além da pressão em casa, a jovem precisava lidar com o preconceito nas ruas e na escola – opressão que, segundo ela, permanece até hoje. A coragem para contar a verdade à mãe e à família chegou apenas aos 22 anos. “Minha mãe ficou em choque”, relembra. “Ela não queria ter um filho ‘desse jeito’. Foi um longo processo de compreensão, mas hoje em dia ela me aceita do jeito que eu sou: uma mulher”, comemora.

SUS já oferece atendimento especializado para pessoas trans na Paraíba

Após a portaria do Ministério da Saúde que normatiza o processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS), Nancy, Andreina e outros transexuais femininos e masculinos da Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco começaram seus tratamentos hormonais regularizados no Ambulatório de Travestis e Transexuais do Clementino Fraga, em João Pessoa.

O complexo hospitalar Clementino Fraga, em João Pessoa. O complexo hospitalar Clementino Fraga, em João Pessoa.

Inaugurado no dia 24 de julho de 2013, o Ambulatório TT, como é conhecido, é o primeiro espaço voltado para a saúde dessa população na Paraíba e o sexto no Brasil. De acordo com Sérgio Araújo, coordenador do espaço, desde a inauguração foram realizados 1050 atendimentos. O ambulatório oferece oito especialidades, entre endocrinologia, psiquiatria, psicologia, fonoaudiologia, serviço social, urologia e ginecologia.

Segundo Sérgio, o processo para que o hospital esteja habilitado a realizar cirurgias de transgenitalização aguarda apenas o alvará da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Rodrigo Varela, médico endocrinologista no ambulatório, afirma que o serviço é indispensável para travestis e transexuais. “A maior parte dos médicos não tem preparo para lidar com pessoas trans”, avalia, acrescentando que todos os profissionais do Ambulatório TT recebem um treinamento especial.

O tratamento hormonal oferecido pelo ambulatório está ajudando Nancy a finalmente sentir-se confortável consigo mesma. Em cerca de dois anos, ela deve estar apta para realizar a cirurgia de readequação sexual. “Eu fico muito ansiosa para que o tratamento e a cirurgia passem logo”, desabafa. “Esse tratamento representa o que eu sou e o que eu sempre sonhei. Eu nunca gostei do meu corpo, nunca gostei de me olhar no espelho. Mas agora isso vai mudar”.

Discriminação e violência são desafios diários

Espaços como o Ambulatório TT, infelizmente, ainda são exceção. Travestis e transexuais precisam enfrentar uma realidade difícil, não apenas em casa, mas também na sociedade.

Segundo a Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana do Estado (SEMDH), 31 travestis e transexuais foram assassinados no Estado nos últimos quatro anos – em 2014 foram oito homicídios e, neste ano, dois casos já foram registrados. Com base nesses dados, uma pesquisa do Grupo Gay da Bahia concluiu que a Paraíba é o quarto Estado do país mais perigoso para pessoas transgênero. No início de junho, uma travesti foi atropelada de propósito em uma avenida de João Pessoa.

Essa violência faz parte do dia a dia de Andreina e de milhares de pessoas trans. “Somos um país muito atrasado”, afirma. “Eu, por exemplo, faço questão de usar o banheiro feminino – por necessidade, porque sou de fato mulher – mas também por medo de violência e até estupro se eu utilizar o masculino”.

Em resolução publicada no dia 12 de março deste ano, o Governo Federal estabeleceu que o uso de banheiros e vestiários nas escolas deve obedecer a identidade de gênero de cada estudante. Ainda não há, entretanto, uma lei que estenda esse tratamento para banheiros de qualquer outro estabelecimento, o que pode trazer constrangimentos e insegurança para indivíduos trans.

"Há avanços nos direitos, mas que não são o suficiente", avalia o presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo da OAB-PB, José Mello Neto. "Muitas pessoas falam de ‘privilégios’ quando a população LGBT, em especial travestis e transexuais, conquistam novos direitos. Mas a questão é que essas pessoas não reconhecem que lutar para não ser espancado na rua, por exemplo, não é privilégio algum. Atualmente, um travesti ou transexual não tem os mesmos direitos que um heterossexual, não tem as mesmas oportunidades", diz ele.

A professora Loreley Garcia, pós-doutora, que leciona na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pesquisa gênero e sexualidade, acredita que a falta da informação da população no geral dificulta a luta por direitos de travestis e transexuais. "A população ignora e desrespeita o travestismo e a transexualidade", afirma ela. "O que eles tentam é apenas ajustar os seus sentimentos íntimos à sua corporalidade, muitas vezes em conflito", explicita.

Para Andreina, o preconceito com relação a pessoas transgênero nasce na intolerância disfarçada sob o invólucro da religiosidade e na falta de informação e empatia das pessoas. “Quando conseguimos avanços, as pessoas acham que estamos invadindo um espaço reservado apenas àqueles que seguem a linha ‘normalidade’”, avalia, fazendo uma expressão de desdém ao destacar com os dedos a última palavra.

Segundo ela, o preconceito contra os trans está presente mesmo no movimento LGBT. “Muitos homossexuais ainda acham que os travestis e transexuais são um ‘estereótipo forçado’ dos gays”, lamenta.

Todavia, é na sociedade em geral que ela acredita que reside a maior fonte de opressão. “Mais do que gays e lésbicas, os travestis e transexuais são vistas pelas pessoas como destinadas à prostituição, à perversão, a um submundo escondido”, avalia. “Mas nós nos recusamos a aceitar isso. Nasci com sexo biológico masculino, mas identidade de gênero feminina. E daí? Isso não me faz pior que ninguém”.

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Originalmente publicado aqui, aqui e aqui.